Conheça o trabalho de Ionara Rabelo, Psicóloga do coletivo SOUT – Vozes em Movimento, e do Médicos Sem Fronteiras

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"Coisas horríveis a gente já espera ver — eu já presenciei muitas atrocidades —, mas Gaza extrapolou todos os conflitos. Não há comparação. O sofrimento, a impossibilidade de sair, a sensação de abandono, de que o mundo os esqueceu… O que eles vivem é como concentrar vinte anos de dor em um único dia."

Você já atuou em diversos lugares como psicóloga de Médicos Sem Fronteiras — como na Libéria, no Afeganistão e em outros países. Como começou a sua trajetória e a sua relação com a Palestina?

Eu fui pela primeira vez à Palestina em 2010, sem conhecer muito bem o que era o lugar — afinal, a Palestina é muito invisibilizada. A primeira coisa chocante de que me lembro foi chegar ao aeroporto de Tel Aviv e viver aquela situação humilhante: ficar horas sendo interrogada, explicando o que o MSF estava fazendo lá.

Depois disso, fui para Hebron, onde permaneci na minha primeira missão. Lembro-me claramente de atender um menino magrinho, de treze anos, que havia sido preso. Ele teve um ataque de ansiedade grave na prisão, e acabou sendo libertado porque temiam que tivesse um ataque cardíaco. Quando comecei a atendê-lo, resolvi propor uma atividade de colagem livre e pedi para ele me contar o que víamos nas imagens — porque é tão difícil falar da dor. Ele colou uma imagem do Lula chegando à Palestina, distribuindo alguma coisa (não lembro exatamente o quê), logo depois de o Brasil reconhecer o Estado Palestino. O menino colou essa imagem junto à bandeira do Brasil. Perguntei: "Você sabe de onde é essa bandeira?" Ele respondeu: "Sim, é do seu país. O seu país é que está ajudando a gente agora."

Essa foi a primeira situação que me encantou e me fez perceber o quanto podemos fazer diferença. A segunda foi com um homem que se machucava muito, se cortava, morava em um campo de refugiados. Eu comecei atendendo a filha dele e, aos poucos, ele foi ganhando confiança até pedir para ser atendido por mim. Um dia, ele olhou para mim e disse: "Você sabe que eu só aceito ser atendido por você porque você é brasileira? Você é brasileira, você está com a gente. Eu confio."

Essas e muitas outras situações me fizeram sentir que aquele povo é o meu povo.

Durante essa primeira missão, atuei em Hebron, e para conseguir atender eu precisava passar por soldados e checkpoints — precisava ser autorizada para entrar e trabalhar. Foi a primeira vez que vivi isso: ter de enfrentar alguém armado para poder atender um paciente. Lembro de um dia em que o soldado não queria me deixar entrar, e eu insisti, dizendo que tinha permissão para atender os palestinos como psicóloga do MSF. Foi a primeira vez que precisei ser ativa para poder exercer meu trabalho — diferente do que ocorre normalmente, quando ficamos nas unidades de saúde esperando que os pacientes venham até nós. Ali, havia um soldado, um portão, um checkpoint, e armas para atravessar.

Essa primeira experiência na Palestina me marcou profundamente. Voltei no ano passado para ficar três meses entre a Cisjordânia e Gaza — sendo três semanas em Gaza — para montar equipes e coordenar estratégias.

E como foi a experiência de estar em Gaza?

São várias cidades totalmente destruídas — um deserto de cimento e ruínas. Ainda havia algumas pessoas tentando sobreviver sob os escombros, mas, quando Rafah começou a ser evacuada, nós presenciamos tudo. Estávamos ao sul de Deir al-Balah quando a evacuação começou, e vimos a praia se enchendo de gente, de tendas — um imenso acampamento.

O caminho era todo devastado: só se via areia e destruição. Havia muitas crianças pequenas, o tempo todo muito sujas, sem acesso à água. Elas carregavam jericãs para buscar água nos poços onde tentavam dessalinizar a água do mar. Vi muitos burrinhos pequenos transportando crianças e adultos. Vi mulheres grávidas chegando ao hospital montadas em burros.

Ficamos hospedados em uma casa ao lado de uma mesquita, de onde vinham as chamadas para a oração bem cedo, por volta das quatro ou cinco da manhã. No início, tive muita insônia — assim que começava a chamada, eu já não conseguia dormir. Aquilo me incomodava, embora me lembrasse de uma cena de 2010: eu havia feito um atendimento muito difícil com uma mulher que precisei ajudar, mas não consegui proteger como gostaria. Quando voltei, chorei muito, e naquele momento ouvi a chamada para a oração. A sensação foi tão acolhedora, tão forte.

Desta vez, quando voltei da Palestina para o Brasil, senti falta daquela chamada — uma espécie de abstinência. Passei a sentir saudade de ouvi-la, porque aquilo me acalmava.

Em Gaza, nas primeiras noites, quando a oração começava, eu sempre ouvia uma criança repetindo a chamada em voz alta. Eu não conseguia ver quem era. Até que, um dia, cheguei do trabalho e finalmente vi: era um menininho. Ele saía de casa na hora da prece e cantava com tanta força, com tanta energia, olhando para todos os lados. Aquele menino não tinha nada — nem casa, nem comida, quase nem água —, mas estava ali, cheio de vida, cantando aquela oração. Eu pensei: é esse menino que, no fim de tudo, vai sobreviver.

A lembrança que ficou é a de um povo inteiro lutando — como aquele menino —, lutando muito, lutando demais.

Qual foi exatamente o seu papel durante a missão em Gaza?

Quando entrei em Gaza, foi para montar as equipes e os protocolos de atuação. Entrei já selecionando as pessoas — a maior parte da equipe era local, e elas já sabiam fazer muita coisa. Atuavam nos hospitais, atendendo em salas de curativo com até dez macas ao mesmo tempo, realizando atividades com crianças... De certa forma, já sabiam lidar com aquela realidade.

Mas o que senti foi que meu papel ali era muito mais o de discutir casos com eles e escutá-los. Eles precisavam muito mais da nossa presença para sentir que não estavam sozinhos, que estávamos ali com eles, testemunhando e apoiando tudo aquilo.

Fomos delineando o que era possível fazer e ajustando o que já não funcionava. Por exemplo, atendimentos individuais de uma hora deixaram de ser viáveis — então passamos a orientar as equipes para priorizar a estabilização das pessoas que chegavam aos hospitais.

Selecionei muitos psicólogos locais para integrar a equipe e também capacitei os que já estavam atuando. Nossos protocolos buscavam responder a uma pergunta essencial: como colocar psicólogos acostumados apenas com a clínica tradicional em um contexto de guerra, sem que se sobrecarregassem?

Desenhamos, então, algumas estratégias no protocolo que usamos, o PFA (Psychological First Aid), para oferecer aos psicólogos um passo a passo — sobretudo para ajudá-los a estabilizar o grande número de pessoas que chegavam em situação de emergência e a aliviar o sofrimento psíquico imediato.

Capacitei bastante as equipes nesse método e em outras técnicas específicas que utilizamos em contextos de trauma.

Como fica o seu psicológico diante de uma situação que não é uma catástrofe natural, mas sim um genocídio?

Coisas horríveis a gente já espera ver — eu já presenciei muitas atrocidades —, mas Gaza extrapolou todos os conflitos. Não há comparação. O sofrimento, a impossibilidade de sair, a sensação de abandono, de que o mundo os esqueceu… O que eles vivem é como concentrar vinte anos de dor em um único dia.

Eu já sei que volto muito afetada. Fico com o nível de atenção rebaixado — não posso dirigir porque corro risco de acidente. Tropeço, deixo cair coisas… É como se meu corpo não aceitasse voltar, não reconhecesse estar em outro lugar depois de ter estado lá.

Na primeira vez que voltei da Cisjordânia, entrei num processo depressivo — não chamo de depressão, mas lembro de não ter energia para nada. Pedi para fazer terapia, e desde então nunca mais parei, porque o retorno sempre é muito doloroso.

Um dos sinais que reconheço em mim é começar a ter muitos sonhos de guerra — fragmentos das histórias que meus pacientes me contaram. Vêm também a insônia, o cansaço, a fadiga profunda. Eu já sei que vou conseguir lidar, que vou fazer o meu trabalho — nunca recusei uma missão —, mas também sei como vou ficar depois e o que preciso fazer para me recompor.

Por exemplo, logo depois que voltei de Gaza, eu não tinha paciência para conversar com ninguém. Não queria falar. Então comecei a escrever alguns textos — eram para mim, uma forma de colocar para fora tudo o que me atravessou.

Dessa última vez, voltei tão mal que tive um problema estomacal: meu estômago praticamente "explodiu". A médica me passou uma receita, mas eu não prestei atenção e fiquei três meses sem tomar um hormônio que ela havia indicado. Essas confusões acontecem porque minha cabeça ainda está lá — afeta várias áreas, inclusive o movimento, o corpo todo.

Foi por isso que entrei no Sout — porque eu queria estar com pessoas que também estivessem ajudando quem está lá.

Você, que já esteve na Palestina em outras ocasiões, quais foram as principais mudanças que percebeu no território da Cisjordânia durante esta última missão?

O sofrimento é muito maior. Eles percebem que os ataques dos colonos pioraram. Em Jenin, houve uma noite em que um tanque entrou na cidade e lançaram bombas — algo que nem eu nem eles tínhamos visto antes. Destruíram a praça de Jenin, derrubaram os fios de eletricidade… É uma mensagem clara para a população: a de que estão destruindo a própria vida cotidiana.

O desemprego aumentou, assim como a falta de acesso a recursos básicos. O dinheiro da Autoridade Palestina passa por Israel e, desde outubro de 2023, essa verba deixou de ser repassada — o que impossibilita o pagamento dos salários dos servidores públicos palestinos. Com isso, há uma grave crise financeira, especialmente nos hospitais: enfermeiros e médicos já não conseguem atender como antes, por falta de recursos.

Há também muitos trabalhadores palestinos que antes prestavam serviços a colonos israelenses — em fazendas, obras ou restaurantes — e que, desde o início da guerra, foram proibidos de trabalhar.

Há muito sofrimento na Cisjordânia.

Como é viver entre dois mundos — Gaza e Brasil — e depois tentar voltar à chamada "normalidade"?

Só de entrar na Jordânia, logo depois de sair de Gaza, pensei: "Não acredito que estou a dois passos de Gaza e parece que está tudo normal." Esse estranhamento me dominou. Fui comer um doce famoso — era final do Ramadã — e achava aquilo muito esquisito; sentia que não pertencia àquele lugar.

Quando cheguei ao Brasil, voltei muito irritada. Olhava para as pessoas e pensava: "Vocês não estão vendo que tem criança morrendo só por ser criança e por ter nascido em Gaza?" Tinha vontade de rasgar todo mundo, de chocar as pessoas contando algo terrível. Percebi que precisava fazer terapia e criar muitos filtros para suportar essa normalidade, enquanto as pessoas discutiam com psicólogos a crise da mulher de 40 anos, e eu via crianças que mal caminhavam perder uma perna.

Foi muito difícil: queria que os outros enxergassem o que eu via. Atendi várias crianças que haviam sido atiradas contra paredes — o impacto das bombas as lançava, batiam nas superfícies, muitas com traumatismos. Voltar a essa normalidade foi, depois de tudo, um exercício doloroso.

Como podemos preparar os profissionais de saúde para lidar com realidades tão desafiadoras quanto a das pessoas refugiadas que estão chegando ao Brasil?

Acho que deveria haver imersões desses profissionais na cultura daquele povo. Lembro que sempre havia um estranhamento no início de qualquer atendimento. Por exemplo: descobri que precisava de uma "entrada" naquela casa palestina, naquela família tão sofrida — estar ali, antes de tudo, com a família inteira ao meu redor querendo saber quem eu era, enquanto eu procurava entender quem eram eles.

A lógica ocidental de "a pessoa vem ao meu consultório" não funciona nesse contexto. Eles precisam, antes de tudo, confiar na pessoa que vai conversar e brincar com a filha, na pessoa que vai falar com a família e perceber o quanto essa pessoa realmente compreende que, muitas vezes, o que mais acalma é a mãe lendo o Alcorão ou a chamada para a oração.

É necessária essa imersão, essa convivência: tomar chá, sentar no chão, ficar no mesmo nível. Já atendi pacientes com 17 pessoas da família participando — é preciso sensibilidade para entender que não adianta falar com apenas uma pessoa: é preciso compreender o tecido social deles.

A segunda questão é a arte — da arte "passiva" à arte "ativa". Há momentos em que a fala não funciona: jogos, desenhos, músicas entram ali. Nunca vejo a psicologia atuando sozinha; ela precisa da arte. Assisti a uma palestra de uma professora de Nova York que, por estudos, demonstra como a arte modifica o cérebro de pessoas que passaram por trauma — não é só pela fala. Recentemente realizei um estudo em Harvard sobre isso também: a arte precisa caminhar junto com a psicologia.

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